quinta-feira, 13 de abril de 2023

Comida de cego

Comida de cego


Manhã cedo. O despertador lembrou ao Marcos que era hora de parar de dormir. Lá fora, uma chuvinha fina insistia em espalhar-se por todos os cantos.

Marcos levantou-se e arrumou logo sua cama. Esticou o lençol e deu aquelas batidinhas clássicas nos dois travesseiros que acomodam sua cabeça para o sono. Depois, uma fina colcha para encobrir o lençol. Até aquela dobra ele fez.

No banheiro, suas necessidades mais imediatas. Mas nem se olhou no espelho. Também não adiantaria: estava tudo escuro.

Assim mesmo ele caminhou para a cozinha. Abriu o armário de cima e pegou o pote de café. No armário do lado, a armação onde colocou o saco de coar e o pó. Ainda no armário do lado, uma vasilha para esquentar a água. Mediu duas xícaras de água do filtro de barro que mantinha sobre a bancada da pia. Primeiro colocou a vasilha sobre a boca do fogão. Depois, acendeu o fogo.

Abriu a geladeira e pegou o pão de forma e a manteigueira. Na primeira gaveta do armário, a faca e logo a colher. Passou a manteiga em duas das fatias que retirou do saco. Colocou ali do lado e devolveu o pão e a manteiga para a geladeira. O som das borbulhas da água indicavam que ela estava no ponto. Apagou o fogo e aos poucos deixava a água correr para dentro do saco com o pó do café. Embaixo do saco estava sua canequinha de ágata. Logo, cheia era hora dele sentar-se na mesinha para o café. Não gostava de café com leite nesta hora. Calmamente mexeu o açúcar e tomou seu café entre mordidas no pão. Terminado, levantou-se e lavou todos os utensílios usados. E não esqueceu de jogar o pó de café na lata do lixo.

Hora do banho matinal, frio, e se vestir.

Ele tinha um jeito especial de escolher as roupas que usaria no dia. Seu armário é arrumado de forma que ele saiba exatamente que peça pegar. O tempo mostrou aos seus dedos a diferença entre cada uma delas. Agora, nesse friozinho ajudado pela alta umidade ele pegou uma jaqueta de gola. A calça jeans e a camisa estavam em lugares específicos. Um trabalho que foi sabendo definir ao longo de sua vida solitária naquele apartamento.

Tudo pronto, pegou seus olhos, que estavam bem próximos à porta do apartamento. Fechou a porta e começou sua caminhada para o trabalho.

Já decorara o caminho entre a porta do apartamento e a do elevador. Chega à porta da rua, toma o caminho à esquerda e caminha até o ponto do ônibus. Por via das dúvidas aceita a ajuda de uma senhora e informa-lhe o número do ônibus. Nem demora muito e ele está em pé no ônibus pois não se sente diferente pra ficar sentado: suas pernas estão boas...

Desce no ponto certo e segue as guias colocadas esporadicamente pela Prefeitura da cidade até o prédio onde trabalha.

Alegria de todos do prédio ele começa o dia com a alegria do cumprimento e das sacanagens que fazem com ele.

Sentado em seu posto de trabalho cumpre as tarefas esperadas durante o dia.

Na hora do almoço sai com os colegas que o levam pra comer numa galeteria. Apenas galetos no espeto e batatas fritas que ele adora pois são cortadas em apenas 4 fatias no sentido do comprimento. Resolveu tomar um guaraná. Na lata, um canudo de papel para ajudá-lo, foi providencialmente entregue por um dos companheiros.

Terminado o expediente ele volta para casa.

Chegando em casa, deixa seus olhos logo ali, no lugar de sempre... Vai ao quarto e pega sua roupa para trocar após o banho.

Já na cozinha, abre a geladeira e vai direto à gaveta dos legumes. Lá pega vagens, cenoura, abobrinha e repolho. Numa gaveta no armário ao lado da pia, pega duas batatas.

Já na pia, lava cada um deles com carinho. O tato ajuda a descobrir alguma irregularidade que possa significar estar impróprio para o consumo. Com a ajuda de um descascador de legumes (dos firmes), descasca as batatas e cenouras. Coloca numa bacia de plástico. Pega uma faquinha para cortá-los em tamanhos não tão pequenos. Coloca uma panela com água sobre a boca do fogão e, gira a manopla para o acendimento automático. Coloca sobre ela uma cestinha de bambu para cozinhá-los no vapor. Dentro, os legumes já cortados.

Hoje ele quer comer hambúrguer: pega a caixa no congelador e retira uma embalagem individual. Segue o mesmo procedimento com a frigideira antiaderente e acende o fogo, colocando em seguida o hambúrguer. Toma o cuidado de colocar o cabo da frigideira para o lado de dentro do fogão para evitar que numa de suas passadas por ali possa sofrer algum acidente.

Na mesinha, forra uma pequena toalha toda colorida. Coloca um pouco de água num copo e ali, junto com os talheres, faz companhia para o prato, ainda vazio.

Testado o ponto de cozimento dos legumes, foi hora de temperar: maionese e mostarda amarela envolveram os legumes ainda quentes.

Pegou seu prato e colocou os legumes e o seu hambúrguer de forma que ao colocar o prato à mesa, a carne correspondesse às 6 horas num relógio analógico e os legumes à meia noite...

A música saia calmamente do aparelho de som trazendo paz. Antes de iniciar o jantar, como sempre faz antes das refeições, agradeceu a possibilidade de estar ali, ele mesmo, preparando o seu alimento. Calmamente cada garfada foi saboreada com o prazer que ele esperava.

Levantou-se e pegou uma tangerina para comer de sobremesa: ali mesmo, sobre o prato ficaram as cascas e as sementes. Depois levantou-se, colocou as sobras da tangerina no lixo e foi cuidar de lavar e guardar tudo que havia usado naquela noite.

Ainda colocou o lixo na lixeira do prédio e recolheu a roupa que havia colocado para secar. Nova leva foi para a máquina de lavar e enquanto guardava a roupa para a passadeira e ouvia um pouco do noticiário na TV.

Enquanto isso pensava sobre um colega que depois da convivência descobrira como comprar frutas, legumes e verduras às cegas. Sempre que ia ao Hortifruti ou à feira fazia questão de fechar os olhos para escolher. Nunca mais havia apertado estes produtos...

F A C I L I D A D E S
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