domingo, 5 de setembro de 2010

Quer ser cozinheiro?


Quatro e meia da manhã. A escuridão ainda está firme ali na janela do quarto de Adilson. Meio sonolento ele levanta ao som daquele despertador do celular ali agarrado ao seu ouvido.

De pé, vai até a janela e a abre. Lá, ao longe, as pérolas brilhantes marcam a silhueta da praia. Junto, as dos porédios também colorem aqui e ali a noite escura.

Adilson segue até um cubículo onde uma lata dessas de margarina está cheia de água. Com uma dessas cuias de queijo do Reino ele molha o rosto e a cabeça: é preciso espantar o sono. Escova os dentes e lava a boca. É preciso espantar o que ficou do sono.

Veste as meias, a calça e coloca o tênis surrado de tantas jornadas. Uma camiseta meio puída cobre seu dorso. Verifica na sua mochila seus apetrechos pessoais. As facas, devidamente cintadas em filme plástico, seu jaleco e mais algumas outras coisinhas. Sua mãe, Elvira havia lavado, passado e dobrado cuidadosamente o jaleco que agora era colocado na mochila.

Uma passada junto à cama de dona Elvira, um carinho em seus cabelos já grisalhos e um beijo em sua face. O sono dela ainda que fosse superficial a mantém ali junto ao travesseiro por conta de sua cansativa jornada.

Começa a longa descida do morro até o ponto do ônibus. O café preto com pão e margarina é tomado ali no botequim do Quinzinho. Um copo americano de café preto, fumegante e um pão “francês” que acabara de chegar da padaria. A margarina espalhada de qualquer jeito deixa ondulações que nem as do asfalto de nossas ruas...

Adilson precisa desse café por pior que ele possa ser. Come rapidamente o pão e engole o café. Segue até o ponto onde deixa passar o primeiro ônibus de tão cheio que ele veio. Por sorte logo a seguir chega um mais vazio um pouco. Entra, passa na catraca mas cadê lugar para sentar? Nada! Serão quase uma hora e meia até Copacabana, se o trânsito fluir bem.

Felizmente neste dia, tudo correu bem. Até o trânsito.

Chegou no restaurante antes que o comprador chegasse. Ele foi o primeiro. Sentou-se na soleira da porta e recostou seu corpo de encontra a parede e a porta. Abraçado com sua mochila acabou pegando no sono, só despertado pela gozação do Antônio, o Comprador:

- Levanta daí muleque!

Um pulo assustado com a mochila agarrada em suas mãos o colocou de pé, rosto quase colado ao de Antônio. Desta vez quem se assustou foi Antônio.

- Calma companheiro... Apenas um sustinho pra zoar esse sono! Passou a noite nas orgias?

Que nada, hoje nem pude sentar na vinda. O busão veio enchendo que nem bexiga, até quase espocar gente pelas janelas. Cada curva, um sufoco.

Enquanto isso, Antônio abria a porta e Adilson passou no balcão e assinou a sua chegada.

Passou no vestiário e deixou sua roupa de casa e vestiu a do trabalho. Uma olhadinha no espelho pra ver se estava tudo direitinho e lá foi ele para a sua “praça” cuidar das primeiras providências.

Nova passada de pano com álcool sobre a bancada, começou a retirar uma a uma as vasilhas de molhos e complementos da “praça fria”. A cada vasilha, o pano embebido em álcool era passado nas bases. Tudo na bancada era hora de verificar a validade. Na realidade alguns ingredientes seriam jogados fora e outros cuja integridade ainda boas seriam mantidos até que terminassem.

Os vegetais folhosos tinham todas as suas folhas e pétalas verificadas e as que apresentassem qualquer sinal de degradação eram logo descartadas. A cada uma dessas inspeções, anotava em seu caderninho, como se montasse sua ordem de serviço para complementação ou feitura.

Os molhos eram experimentados um a um e a decisão não se baseava apenas no odor. Os que não precisavam de reposição iriam sendo colocados na bancada refrigerada e cobertos com filme de pvc.

Logo a seguir ele verificava as sobremesas. Era preciso fazer delas novamente pois o que ficou da noite passada era muito pouco para o almoço.

Com isto sua lista aumentou mais um pouco.

E ainda precisaria fazer o pão servido no couvert.

Começou por este. Como a fermentação deste era de quatro horas, quase o tempo exato de ir ao forno e já começar a viagem para as mesas dos clientes, era a prioridade. Massa preparada ela foi colocada num cantinho onde, cobertinha, poderia tirar um bom sono daqueles de dar inveja ao Adilson.

Preparou os molhos e colocou nas “mamadeiras” para utilização na nontagem dos pratos.

A esta altura já haviam chegado mais dois colegas. Até ali, apenas o som de um velho rádio de pilha fazia companhia para ele. Agora já começava a agitação das vozes e barulhos de acessórios e ingredientes. Ali noutra bancada Marcelo cuidava dos lindos camarões que haviam chegado junto com o salmão e os dois lindos robalos, enormes. Era preciso fazer todo o trabalho de “peixeiro”: escamar, filetar e porcionar. Ainda assim, embalar cada porção, e colocá-las no refrigerador.

Ainda preparou as sobremesas do dia: pudim de leite em ramequins, profiteloles com dois tipos de recheios (chocolate e doce de leite) e a torta de ganache de chocolate amargo.

Tudo quase pronto, Severino pede ajuda pra cuidar do mis-en-place da praça quente...

Terminadas suas tarefas, lá foi ele ajudar o companheiro. Lavagem e higienização de salsinha, coentro, manjericão. |Enquanto o tempo corria, picava finamente as cebolas necessárias. Depois de higienizadas as aromáticas, era hora de torná-las quase um pozinho de tão pequenas que ficavam. Tudo era colocado em GNs para facilitar a vida do Severino na hora da “onça beber água”. Conseguiram deixar tudo em ordem por mais um dia.

A hora chegara e agora, cada um sabendo exatamente suas funções já começavam a ficar nervosos olhando para o relógio. Eis que a porta “tipo saloon” da cozinha se abre e o “chef” chega já pagando...

Depois, uma enorme gargalhada. Era apenas para ajustar o time da equipe. O dia iria começar pra valer agora.

Casa cheia era promessa de stress total até o final do almoço. Depois ainda teria mais.

Ainda quer ser cozinheiro?

F A C I L I D A D E S
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Um comentário:

Zé Augusto disse...

Pois é, esta é a realidade do dia a dia de um restaante ou bar. Faço consultoria na área, que já perdí a conta de quantos pseudo chefes recem formados na teoria chegam para entrevistas, achando que vão começar comandando e quando explicamos suas tarefas diárias, saem tristes e decepcionados, pois esqueceram de dizer aos mesmos nas aulas teórias, que haveria a prática, que é a de um cozinheiro. Belo relato. Parabéns. José Augusto