quarta-feira, 26 de junho de 2019

Comida sustentável

Lá bem longe daqui, mas ainda no Rio, morava o senhor Francisco Pinto. Português de Trás-os-Montes, veio ainda me­nino para o Brasil. Chegou para ficar na casa dos primos que antes vieram para cá.

O tempo foi andando, ora devagar, ora mais apressado, até que ele pode comprar um pedaço de terra lá para os lados de Cavalcante. Ali, chamado de Campo da Botija – não me perguntem porque pois ele nunca me disse – ele montou uma olaria. O que fazia? Tijolos.

Mas o tempo passou. Ele casou com dona Georgina. Deste casamento floresceram a Diva, a Dalva e o Durval. Ali, en­tre barros e tijolos eles cresceram até que um dia não mais era possível retirar o barro para o fabrico dos tijolos.

Mas a humilde casa onde ele morava ali permanecia sólida como os pés dele fincados neste país que o acolheu.

Quando eu o conheci, ainda menino, a visão que meus olhos alcançavam era de um enorme valão por onde escoava o esgoto das casas que existiam no que era a “rua” onde ele morava. Meu pai parava o carro na direção de uma “pin­guela” por onde tínhamos que nos equilibrar para chegar ao portão da casa. Era farra pura.

Dali ao portão, era pouca coisa. Talvez, se bem me lembro, uns três, talvez quatro passos. Mas do portão até a porta da casa, uma bela corrida nos fazia chegar primeiro que meu pai e minha mãe. Ela, a Diva, a primeira dele, Francisco.

Uma corrida que apenas acabava nos braços de minha vó Georgina e depois nos do vô Chico. Era uma promessa de dia maravilhoso.

Entre o portão e a casa, uma horta: será que ainda lembro de tudo? Couves perfiladas pelo canteiro. Pés crescidos e apenas as folhas do topo permaneciam: as demais já haviam virado alguma comidinha gostosa pelas mãos dela.

Tinha figo desses hoje conhecidos como “de Valinhos”. Tinha limão Cravo, conhecido naquela época por “galego”: sua polpa cor de tangerina inebriava a carne do frango e dos porquinhos que viravam comida da gente. Os porquinhos que eram mortos pelas mãos precisas do vô, ficavam na “vinha d'alhos por um bom tempo. Acho que de um dia para o ou­tro. Volta e meia ela mexia, revirava espetava a carninha deles para ficarem mais maravilhosas com os simples tempe­ros: sal, alho, folhas de louro e grãos pretos de pimenta do Reino.

Depois, retirado do alguidar (de barro) onde dormira o tempo todo, iria para o forno assar até ficar crocante por fora e tão macio por dentro que o comíamos de colher. Batatas, sempre batatas completavam. Essas compradas, o resto, colhidos ali mesmo no quintal.

Outra faceta desta vida era a nossa ao querer pegar uma galinha (ou seria frango) para ser preparado pela vó. Cedo, na hora de dar milho à eles, ela nos ensinava: primeiro o purupupu que era o som que fazíamos para chamar as galinhas. Vinham correndo ávidas pelos grãos de milho que se espalhavam pelo quintal próximos aos nossos pés. Até algumas bicadas levávamos e, por conta do susto, pulávamos e gritávamos, causando um enorme alvoroço entre as aves. Ali, em pé, era preciso se abaixar lentamente como se quiséssemos enganá-las e vapt, pegar suas pernas com nossas pequenas mãos. Logo vó Georgina nos acudia pois ainda não tínhamos força suficiente – nem a malícia esperada – para mantê-las firme. Assim, ficava mais fácil do que simplesmente escolher uma e sair correndo atrás dela.

Depois de pega era a hora mais difícil pra gente: vê-la morrer diante de um golpe certeiro em seu pescoço. O sangue colhido serviria pra fazer o “molho pardo”. Depois de morta, um banho de água quente se incumbiria de abrir os poros e facilitar a retirada das penas. Feia e pelada, era hora de cortá-la, sempre pelas juntas e assim, depois de retirada das vísceras (ela separava o coração, a moela e o fígado) estava pronta para os temperos.

Aqui reinavam na cozinha as folhas de louro colhidas na horta juntamente com a salsinha e a cebolinha. Juntavam-se à elas a cebola picadinha na mão e o alho socado com sal. Depois de lavados cada pedaço, eram todos colocados no alguidar e devidamente untados com óleo de Milho (era o que estava na moda naquela época) e dos temperos. Ficavam ali umas duas, três horas, sei lá...

No sangue já havia sido colocado o vinagre para evitar que talhasse. Assim ele iria pra panela. Engrossaria e formaria o denso molho de cor parda que cobria as batatas cortadas em 4 e os pedaços de frango. Quando postos na travessa que iria pra mesa, ela ainda salpicava salsa e cebolinha picadas. Lindo de ver e gostoso de comer. Confortável para nosso corpo e divina para nossas almas.

E assim meus avós viveram naquele tempo e nos mostraram o cuidado com a terra, com os alimentos e com os animais. Isso era “sustentabilidade” mesmo que eles não soubessem o que era plantar e comer; criar e comer.


F A C I L I D A D E S
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5 comentários:

Unknown disse...

Bom tempo que nao volta mais.

Véra Lima disse...

Uau! Viajei no tempo!

Luiz Moreira disse...

Grande história.
A realidade do que pode se chamar de vida saudável.
Graças ao bom Deus, tbm pude conhecer dessa simplicidade e aconchego de poder plantar e colher o próprio sustento bem como a criação de diversas espécies animais para o consumo, tudo dentro dos limites que hoje não vemos mais!

Cezar disse...

Legal, gostei de ler!!

Lourdes disse...

Viajei com sua história! Que delícia de tempo! Que bela recordação, dessas que a gente faz questão de relembrar e mergulhar no tempo. Obrigada por compartilhar suas recordações! Adorei!