O sol ainda não havia chegado plenamente. Se espreguiçava lá longe entre a copa das árvores mais altas que perfilavam-se às margens daquele igarapé e nós já estávamos com as tralhas, caminhando em direção à canoa que estava ali amarrada, na beira-rio.
Tião, como era assim chamado pelos ribeirinhos recebera de sua mãe o nome de Sebastião, como tantos no Brasil mas que para facilitar e criar intimidade as pessoas chamam de “tião”.
Mas, combustível com sua mangueira conectada ao pequeno motor de popa, foi dada a partida do motor.
Navegávamos relativamente no meio do leito do igarapé, se assim poderíamos chamar de meio... Bem uma hora calmamente deslizávamos sobre a superfície espelhada e Tião começou a reduzir a velocidade e seus olhares ficaram mais atentos.
Tão logo avistou uma pequena “enseada”, deixou a canoa escorregar até lá, com o motor deligado.
Ficamos ali um bom tempo parado. Não tardou o pipocar de borbulhas chamou a atenção de Tião, seus olhos treinados procuraram a “siriringa”, o quase imperceptível movimento da superfície da água provocado pelo deslocamento das camadas inferiores. Viu-a e, calmamente, sem pressa, pressentiu a direção seguida pelo grande peixe, ergueu o braço forte segurando o arpão com a palma da mão, elevou-o a altura do ombro e num impulso rápido lançou o arpão a alguns palmos à frente da “siriringa” na certeza de ter encontrado seu “alvo”.
Uma revolução até que o arpão pudesse ser puxado e trazido até o costado da canoa mostrava o quanto lutava o gigante amazônico para livrar-se do incômodo. De repente, o grito de satisfação de Tião mostrou-me que ele havia vencido o gigante. Mais um pouco, a atenção redobrada e a orientação para que eu me firmasse na canoa, ele, o gigante nadava em direção à canoa para num gesto de desespero, colidir. Recuou, seguiu no sentido contrário e, Tião, segurava e soltava o peixe ao sabor de uma luta que ele sabia ser vencedor. Durou um tempo até que o peixe percebeu ser em vão sua luta. Deixou-se arrastar até a canoa. Um enorme pirarucu de uns dois metros de comprimento que não cabia na canoa, foi amarrado e levado à reboque até nosso portinho.
Ali mesmo, sobre um pequeno cais feito com pequenos caules de árvores locais ele abriu o peixe e eviscerou o mesmo. Uma leve salga e deitou seu corpo sobre uma vara que passou a fazer as vezes de um varal. Ali aquele enorme peixe seria secado para ser comido por um longo período de tempo: era a forma encontrada para que fosse preservado aquele sabor sem que pudessem ser alterados os desígnios da mãe floresta.
Segundo a mitologia da floresta, Pirarucu era um índio que pertencia a tribo dos uaiás, que habitava as planícies do Sudoeste da Amazônia. Ele era um bravo guerreiro, mas tinha um coração perverso, mesmo sendo filho de Pindarô, um homem de bom coração e também chefe da tribo.
Pirarucu era cheio de vaidades, egoísmo e excessivamente orgulhoso de seu poder. Um dia, enquanto seu pai fazia uma visita amigável a tribos vizinhas, Pirarucu se aproveitou da ocasião para tomar como refém índios da aldeia e executá-los sem nenhuma motivo.
Tupã, o deus dos deuses, observou Pirarucu por um longo tempo, até que cansado daquele comportamento decidiu punir Pirarucu. Tupã chamou Polo e ordenou que ele espalhasse seu mais poderoso relâmpago na área inteira. Ele também chamou Iururaruaçu, a deusa das torrentes, e ordenou que ela provocasse as mais fortes torrentes de chuva sobre Pirarucu, que estava pescando com outros índios as margens do rio Tocantins, não muito longe da aldeia.
O fogo de Tupã foi visto por toda a floresta. Quando Pirarucu percebeu as ondas furiosas do rio e ouviu a voz enraivecida de Tupã, ele somente as ignorou com uma risada e palavras de desprezo. Então Tupã enviou Xandoré, o demônio que odeia os homens, para atirar relâmpagos e trovões sobre Pirarucu, enchendo o ar de luz. Pirarucu tentou escapar, mas enquanto ele corria por entre os galhos das árvores, um relâmpago fulminante enviado por Xandoré, acertou o coração do guerreiro que mesmo assim ainda se recusou a pedir perdão.
Todos aqueles que se encontravam com Pirarucu correram para a selva terrivelmente assustados, enquanto o corpo de Pirarucu, ainda vivo, foi levado para as profundezas do rio Tocantins e transformado em um gigante e escuro peixe. Pirarucu desapareceu nas águas e nunca mais retornou, mas por um longo tempo foi o terror da região.
Acordado recebi de presente um pedaço desse peixe que muito povoou minha infância trazido de lá pelo meu tio Dário. Mais recentemente podíamos comprar com facilidade num agora inexistente armazém de produtos típicos do norte brasileiro que ficava no Largo de São Francisco carioca. Agora, cada vez mais difícil e, com a pesca controlada e em alguns casos sendo cultivados em cativeiro.
Esse pequeno pedaço seco foi o suficiente para fazer brilhar meus olhos. Era pouco para que pudéssemos ter porcões satisfatórias para cada um de nós diante do desejo alimentado ao longo de tanto tempo. Seria adequado fazer de uma forma que todos pudessem senti-lo. E assim, relembrando uma inusitada comparação com o bacalhau fiz bolinhos de pirarucu seguindo minha receita de bolinho de bacalhau.
Para cada 500g de bacalhau, seiscentas gramas de batata seca (baraka ou asterix) cozidas no vapor, sem cascas e deixadas secar, duas gemas sem pele, duas colheres de farinha de rosca de pão caseiro, cebola em brunoise (os menores quadradinhos que você conseguir cortar, quase cirurgicamente), salsa e cebolinha idem (se desejar) – eu não coloquei – e uma generosa porção de um bom azeite.
Leve o pirarucu (depois de dessalgado por dois dias em água fria) ao vapor apenas até “soltar” a carne da pele. Algo como cinco a 10 minutos. Retire do vapor e numa superfície de trabalho, separe a carne, desprezando a pele e eventual espinha. Com a ajuda de um garfo, desfie a carne. Misture os temperos e depois a batata previamente passada numa peneira.
Bata as claras em neve com uma pitada de sal (de dois dedos). Misture lentamente formando movimentos de baixo para cima.
Coloque óleo de girassol numa panela em altura suficiente para cobrir os bolinhos. Com a ajuda de duas colheres de sobremesa faça bolinhos modelados em movimentos de substituição da massa de uma para outra colher. Deite-os lentamente sobre a gordura e frite até dourar. Coloque sobre uma peneira ou, sobre papel toalha amassado de forma a permitir que os bolinhos não tenham toda a sua superfície em contato com ele. Com isto você evita encharcar o bolinho de gordura...
Depois é só servir...
Um bolinho de pirarucu de dar água na boca!
F A C I L I D A D E S
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