Ainda era cedo. Corria o tempo pelo meio da manhã e já havia feito algumas coisas do que passou a ser minha rotina matinal.
Será? Acho que poderia repensar isto. Afinal muitas das coisas que me habituei a fazer pelas manhãs podem ser acumuladas ou executadas à tarde.
Mas, de uma certa forma, essa coisa de rotina e mania tem me acompanhado por um bom tempo. Afinal meu trabalho profissional exigia sempre cumprimento de rotinas. Umas boas, alegres. Outras, chatas. Irremediavelmente irritantes. Mas necessária. Talvez até, imprescindíveis.
Enfim, hoje posso pensar deste jeito.
Café tomado, emails verificados, lá fui eu com meu inseparável e adorável twingo - Como é maravilhoso o meu francês! - pra casa daquela que é a responsável por essa vida. Tenho me colocado na rotina de ir visitá-la semanalmente.
Seria quase uma viagem se não fosse urbana. Quase o mesmo que chegar na serra da Itaipava maravilhosa. Muitos sinais de trânsito (semáforos para uns, farois para outros). E nesta última vez, um trânsito digno das marginais paulistas pela manhã e à noitinha.
Mas fui. Musiquinha a bordo. Suave, fruto de uma seleção que agrada não só aos meus ouvidos como ao cérebro.
E lá vou eu, driblando os vermelhinhos e os motoristas de ônibus. Não sei porque a "superioridade" que eles acham que têm. Afinal tem lugar pra todos nós nesse mundão de Deus, não é mesmo. Uma pressa incrível para chegar a lugar algum. Ou, ao ponto final para refazer o caminho outras vezes... Enfim, cada qual com seu cada qual.
Já nem posso mais deixar o carro na rua. Aberto como tantos anos de minha vida passada. Nem lá, naquela ruazinha onde passei boa parte de minha juventude podemos isto. Tive que fazer ela abrir a porta da penitenciária (gente, depois da "invasão" ela precisou colocar grades tão altas quanto às das prisões federais). Olho pra ela caminhando em direção ao portão e fico pensando: viveu tão livre a vida inteira e agora prisioneira deste mundo de progresso.
Como era boa a sua infância... portas abertas, sem trancas, terrenos enormes, frutas frescas, horta, água de poço artesiano e lá na esquina, a padaria do seu antônio fazendo pães que nunca mais comi. Forno à lenha, linda casca dourada e miolo branquinho e delicioso. Éramos felizes naqueles domingos de almoço com os avós.
Coloquei o renault na garagem e os beijos e abraços apertados. Entramos.
Lá do fundo o cheirinho de bacalhau vinha em minha direção. Esperei, pois era preciso entregar-lhe os presentes: uma broa de milho e um pão "normal" feitos na véspera, depois de um dia inteiro em gestação. Os seus olhinhos cansados da vida longa brilharam. Era pura felicidade quando sentiu o cheiro do fubá. Abriu num sorriso só "como eu adoro broa de milho!" escapou. Olhou pra mim e arrematou "e feito pelo meu filho". Fazer o que? Muito tempo tentando fazer e a cabeça inquieta.
Aprendizado profissional e muita, mas muita pesquisa em casa. Nada de forno profissional. Hoje brinco com fermentos naturias, longa fermentação, bigas e poolish. Fermentação no frio ou no calor. E eles vão nascendo. Uns melhores e outros piores. Mas sempre meus! E dos felizes que os podem comer.
Comemos uma saladinha de bacalhau regada ao nosso transmontano. É agora só queremos dele, da terrinha do pai, avô. Simples assim, batatas em rodelas, azeitonas verdes, cebolas em anéis, lascas de bacalhau e azeite. Nada mais. Pra que?
Cuidamos de limpar tudo no meio de tanta conversa. Mas conseguimos.
Descemos uma escadinha para o quintal, munidos de tesoura de corte e sacos para recolher as frutinhas vermelhas que se transformas em doces geléias de acerolas. Só as vermelhinhas como já disse aqui.
E agora, as laranjas-da-terra começam a ser colhidas. Ainda não estão plenas mas nós, ansiosos. Começamos nossa temporada laranjeira. Doces em copotas, doces de tirinhas secas ao sol (ela já comprou filó novo só para secá-las.
Voltei para casa com dois sacos: um com acerolas vermelhinhas e outro com laranjas. Mas só depois de um lanche da tarde (coisa que só faço quando vou lá. Mesa cheia e tentadora de açúcares, queijos, pães, biscoitos, café, chás, manteiga honesta, requeijão...
O caminho de volta também foi tão complicado quanto o de ida. E ainda encontrei aqueles impacientes que querem logo chegar em casa para simplesmente ficarem sentados, mudos, diante da telinha vendo aquelas mesmas histórias com as mesmas tramas mas com atores trocados. O mesmo jornal que só repete notícias ruins ou matérias tão incompletas que nem duram um minuto.
Agora, a primeira leva. Aquela que na informática dos anos passados chamávamos de "beta". Uma fornada experimental para os ajustes. Afinal esse verão foi muito diferente. Mas fazer o que?
Já estão ali, de molho depois de descascadas, cortadas, separadas do miolo. É preciso levar um tempo para poder traduzir toda a polpa em um magnífico e carnudo pedaço de doce.
Um novo dia de molho, embebidas na mais pura das águas de filtro de barro e moringa. É um tal de troca-troca que leva tempo. Troca a água embebida por uma fresca. Isso, por três vezes durante um dia.
Por fim, a hora de levar ao lume, como dizem meus amigos d´além-mar. Agora, também a hora de praticar matemática...
É preciso separar um terço do peso das pétalas de laranja em açúcar cristal. E, depois disto, o dobro do peso do açúcar, em água. Ou seja, usa-se as proporções de 3:1 para o açúcar e 2:1 para a calda. Isto dará uma calda fina e não muito doce. O suficiente para adoçar as pétalas sem contudo mascarar o gosto da laranja. A quantidade de calda precisa ser o suficiente para cobri toda a fruta. Se necessário, ajuste.
Deita-se a água ao tacho sobre o lume e chove-se o açucar sobre a água fazendo-lhe um redomoinha de forma a integrar-lhes. Deixe-se que o calor faça de saparecer os grãos do açúcar e então colocam-se as pétalas, arrumando-as. Acrescentei 3 flores de gravo-da-Índia e 5 folhas da própria laranjeira de onde colhi as laranjas.
Fogo lento até o cozimento das cascas. Até que se mostrem meio transparentes.
Enquanto finaliza, lave potes novos de tampas de pressão e, utilizando um caldeirão, coloque um pano de pratos limpo no fundo e coloque os vidros destampados dentro. Acenda o fogo e, quando começar a ficar com raiva (borbulhas), reduza o fogo (á água não ficará mais quente e você ainda economizará gás, petróleo e contribuirá para não aquecer o planeta...) e conte trinta minutos a partir dai.
Ao final, com a ajuda de uma pinça retire um vidro da água e coloque o doce, ainda quente nele. Bata sobre um pano para eliminar alguma bolha de ar existente e tampe (a tampa estará quente!) com a ajuda de um pano. Vire o pote com doce de cabeça para baixo (ou ponta-cabeça, como dizem os paulistas) e deixe em lugar fresco ao abrigo da luz por no mínimo 24 horas! Fazendo assim é possível ter doces de boa qualidade por até um ano, sem conservantes e outras invencionices do mundo moderno.
Este processo é a reprodução dos usados no tempo em que Dom João VI chegou ao Brasil.

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